Em duas sessões plenárias que ocuparão manhã e tarde, o STF (Supremo Tribunal Federal) julga nesta quarta-feira (16) seis processos que poderão afetar diretamente a forma pela qual terras são demarcadas e identificadas para indígenas e quilombolas. A decisão também vai alterar o sistema legal de proteção de unidades de conservação no país.
O “pacote agrário” é alvo de mobilizações de organizações não governamentais, que veem risco de retrocessos. Descendentes de escravos negros e de indígenas deverão fazer uma vigília na Praça dos Três Poderes. Grupos de manifestantes passaram a ocupar a região na noite desta terça-feira (15).
A ação mais antiga tramita há 30 anos no tribunal. A mais recente, há cinco anos. Pela manhã, os ministros vão julgar duas ações que poderão afetar os indígenas -havia uma terceira prevista, mas seu julgamento foi adiado a pedido das partes.
Na ACO (Ação Civil Originária) 362, aberta em 1986, o Estado de Mato Grosso pleiteia da União e da Funai (Fundação Nacional do Índio) indenização por desapropriação de terras que, segundo o governo estadual, foram indevidamente incluídas nos limites do Parque Nacional do Xingu.
O autor da ação alega que os índios não habitavam a região quando ocorreu a demarcação. A Funai afirma que eram terras “imemorialmente indígenas” e a União afirmou que o governo estadual não conseguiu comprovar o domínio sobre as terras.
Num segundo momento, deverá ser julgada a ACO 366, também movida pelo Estado de Mato Grosso contra a União e a Funai. A ação questiona a inclusão de terras que seriam de seu domínio em terras indígenas ocupadas pelos índios nambiquaras e parecis. O governo mato-grossense diz que os órgãos federais se “apoderaram” de terras “sob o falso argumento de serem do domínio imemorial dos nativos”.
Ambas as ações são relatadas pelo ministro Marco Aurélio Mello. Segundo texto divulgado pelo STF, os dois julgamentos se propõem a “saber se as terras compreendidas” nas áreas indígenas “são tradicionalmente ocupadas por povos indígenas”.
A PGR (Procuradoria Geral da República), por meio da 6ª Câmara, que atua no tema das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, é contrária às duas iniciativas do Estado de Mato Grosso e teme que os julgamentos possam ser usados por ministros do STF para referendar a tese do “marco temporal”, apoiada pelo presidente Michel Temer e pela bancada ruralista.
Segundo essa tese, os indígenas só podem reivindicar terras desde que nelas estivessem na data da promulgação da Constituição, em outubro de 1988. Essa interpretação jurídica é apoiada pela atual gestão da AGU (Advocacia Geral da União), pois traria “segurança jurídica” ao tema. Em 2012, durante o governo Dilma Rousseff, a tese também foi apoiada pela AGU, mas logo depois suspensa, devido à repercussão negativa.
Em nota técnica divulgada na terça-feira (15), a PGR afirmou: “Embora a Constituição de 1988 tenha sido a mais avançada e garantista no reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre suas terras, desde 1934 a proteção dessas áreas é albergada em sede constitucional, e mesmo antes disso a legislação infraconstitucional já tratava do tema. Desse modo, quaisquer atos de esbulho e titulação relativos essas terras são, pelo menos desde 1934, nulos e extintos”.
Em texto publicado na Folha de S.Paulo no domingo (13), a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora aposentada da Universidade de Chicago e da USP, e José Afonso da Silva, professor aposentado da Faculdade de Direito das USP, escreveram que o “marco” é “inconstitucional”.
A DPU (Defensoria Pública da União) afirmou, em nota pública divulgada também na terça (15), que o reconhecimento da tese do “marco temporal” pelo STF seria uma negação histórica “dos processos quase sempre violentos e clandestinos, mas com ampla participação de agentes do Estado” que provaram os povos indígenas de seus territórios, “em benefício de interesses privados de poucos indivíduos e famílias”.
QUILOMBOLAS
A partir das 14h, prevê-se o início do julgamento de quatro ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) sobre comunidades quilombolas. Em 2004, o extinto PFL, hoje DEM, ajuizou a ação 3239, para tentar anular um decreto do ex-presidente Lula que regulamentou a titulação das terras ocupadas por quilombolas.
O partido argumenta que o decreto “invade esfera reservada à lei” e gera aumento de despesa. Além disso, questiona o critério de autoatribuição para identificar os remanescentes dos quilombos e para caracterizar as terras a serem reconhecidas a essas comunidades.
A PGR também é contrária ao pleito do DEM e pede a improcedência da ação.Na primeira análise do processo, o então ministro relator, Cezar Peluso, hoje aposentado, acolheu a iniciativa do DEM. Logo em seguida, porém, a ministra Rosa Weber divergiu, votando pela improcedência da ação. O julgamento deverá ser retomado a partir do voto do ministro Dias Toffoli.
Contra a tese levantada pelo DEM, a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e ONGs parceiras lançaram uma campanha virtual, “O Brasil é quilombola! Nenhum quilombo a menos!”, que contava na tarde desta terça-feira com cerca de 70 mil assinaturas.
Em nota, a organização não governamental ISA (Instituto Socioambiental) afirma que quilombolas e seus apoiadores temem que pressões do governo Temer e dos ruralistas influenciem o STF.
“Nesses dois casos, procedimentos de demarcação em andamento e futuros podem ser prejudicados. É menos provável, mas não impossível que terras já tituladas, cuja demarcação foi concluída, sejam atingidas”, argumenta o instituto.
FLORESTAS
Na sequência da pauta do STF, outras duas ADIs têm impacto sobre as Unidades de Conservação, denominação dada por uma lei de 2000 para áreas protegidas por conta de suas “características naturais relevantes”.
A ADI 3646, hoje relatada pelo ministro Dias Toffoli, foi movida em 2005 pelo governador de Santa Catarina contra um artigo da lei que instituiu o Sistema Natural de Conservação da Natureza e contra os decretos presidenciais que criaram três reservas: o Parque Nacional das Araucárias, o Parque Nacional da Serra do Itajaí e a Estação Ecológica Mata Preta, todos do período 2004-2005.
Segundo a ação, os decretos devem ser anulados porque a criação dessas reservas dependeria da aprovação de uma lei.
A PGR pede ao STF que vote pela improcedência desse pedido.Outra ADI, a de número 4717, segue essa mesma linha e é relatada pela presidente do tribunal, Cármen Lúcia.
Ela foi ajuizada em 2012 pelo então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, pedindo a inconstitucionalidade da medida provisória 558/2012, depois convertida em lei, assinada pela então presidente Dilma Rousseff.
A MP levou à redução de oito unidades de conservação na região da Amazônia Legal para permitir a construção de usinas hidrelétricas, como Jirau, Santo Antônio, São Luiz do Tapajós e Jatobá, nos Estados de Rondônia e Pará.
Em nota coletiva divulgada na terça (15), as organizações Instituto Socioambiental, Imazon, WWF, Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, The Nature Conservacy, SOS Mata Atlântica, Greenpeace, Amigos da Terra e Ipam Amazônia defenderam a inconstitucionalidade dessa medida provisória e a constitucionalidade da lei das Unidades de Conservação.
Segundo as ONGs, a decisão do Supremo pode anular “praticamente todas as Unidades de Conservação do país”. “Além disso, resultaria na paralisação completa da criação dessas áreas protegidas”, afirmam.